Por Jimir Doniak Jr.
Um tema de recente debate, em São Paulo, diz respeito aos juros de mora aplicados pela administração estadual em razão de débitos tributários. Eles deixaram de basear-se na Selic e passaram a ser de 0,13% ao dia (3,9% ao mês e mais de 47% ao ano). Após reduções, passaram para 0,03% ao dia, cerca de 0,9% ao mês, ainda superior à Selic. O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que tais juros têm como limite àqueles computados para os créditos tributários federais (Selic).
Ocorre que há outro ponto, pouco debatido, sobre os juros aplicáveis aos créditos derivados de multa.
A administração estadual, com base no artigo 565, § 4º, do Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicação, vem apurando o valor da penalidade de uma forma peculiar. Em lugar de aplicar o percentual legal da multa sobre o valor de sua base de cálculo, o percentual incide sobre essa base acrescida dos juros moratórios. Ou seja, os juros são aplicados antes mesmo de a multa ser imposta. Isso representa um sensível acréscimo no débito fiscal total. Note-se que não se trata de juros de mora sobre a multa já constituída e que passa a integrar o crédito fiscal, algo já admitido pelo STJ[1], mas de aplicar juros sobre a base de cálculo da multa, antes de esta ser constituída.
O pretenso fundamento legal para essa forma de cálculo parecem ser os artigos 85, § 9º, e 96 da Lei nº 6.374/89. Aquele estabelece: “As multas previstas neste artigo, excetuadas as expressas em UFESP, devem ser calculadas sobre os respectivos valores básicos atualizados observando-se o disposto no artigo 96 desta lei”. Esse artigo permite a atualização de valores, o que não se confunde com a imposição de juros de mora. Logo, esse dispositivo não autoriza a forma de cálculo da multa que vem sendo praticada em São Paulo.
Além disso, como é expresso o § 9º, deve-se observar o artigo 96 da mesma lei. Este, de um lado e resumidamente, prevê no inciso I que o imposto fica sujeito a juros de mora, que incidem a partir do dia seguinte ao vencimento. Já o inciso II determina que o montante da multa, “aplicada nos termos do artigo 85 desta Lei”, fica sujeito a juros de mora “(…) a partir do segundo mês subsequente ao da lavratura do auto de infração”[2].
A norma é expressa: enquanto o imposto é (basicamente) corrigido com juros a partir do dia seguinte ao do vencimento, a multa só é submetida aos juros a partir do segundo mês subsequente ao auto.
Essa determinação é decorrência lógica do sistema tributário. O crédito derivado de ICMS é devido desde o fato gerador. Por isso, os juros incidem a partir do vencimento, como previsto no inciso I. Já o crédito derivado de multa só passa a existir e a ser devido a partir da autuação. Antes disso, ele não existe[3]. Tanto é assim que a denúncia espontânea acompanhada do pagamento do tributo afasta a imposição da multa, de acordo com o artigo 138 do CTN. Ou seja, o simples descumprimento de uma obrigação não gera automaticamente um crédito decorrente da penalidade. O mesmo CTN estabelece que o acréscimo de juros de mora ocorre em relação ao crédito não integralmente pago no vencimento (art. 161). Ora, não cabe falar de vencimento para uma multa ainda não imposta.
Ademais, os juros têm o objetivo de ressarcir a administração pelo período, transcorrido no passado, em que ela ficou sem receber um crédito que lhe era devido. Como o crédito derivado de multa só passa a existir após a autuação, não se pode falar em impor juros para período anterior a esse fato[4]. Fazê-lo é cobrar juros em razão do transcurso de tempo passado para algo que passou a existir somente no presente. A impossibilidade lógica é patente.
Não cabe alegar que o eventual transcurso de anos desde a infração justificaria a imposição de juros, caso contrário a penalidade imposta seria mais amena do que deveria. É a Administração quem demora em rever os procedimentos do contribuinte e em identificar eventuais infrações. Basta que a administração fiscal seja eficiente e será evitado o efeito de imposição de multa sobre uma base de cálculo desatualizada (mesmo que se admitisse essa alegação, justificar-se-ia, quando muito, atualizar monetariamente a base de cálculo da multa, mas não impor juros). De qualquer forma, goste-se ou não do artigo 96, II, da Lei nº 6.374/89, trata-se de determinação inequívoca: relativamente à multa, os juros incidem a partir do segundo mês subsequente ao da lavratura do auto de infração.
Também improcede eventual alegação de que, quando da autuação pela administração fiscal paulista, não são aplicados juros à multa, mas, sim, à sua base de cálculo. É indiferente aplicar os juros sobre a base de cálculo, para depois impor o percentual da multa, ou aplicar esse percentual, para depois submeter o resultado aos juros de mora[5]. A ordem dos fatores não altera o produto. Essa eventual alegação seria uma tentativa de contornar, de maneira fraudulenta, a determinação do artigo 96, II, segundo o qual os juros aplicam-se à multa apenas após a autuação.
Por fim, se a lei tivesse determinado a forma que vem sendo utilizada pela administração, teria dito que, em relação às multas, os juros seriam aplicáveis desde o momento da infração. Não foi o que o legislador determinou. Não se pode, na interpretação dos dispositivos legais, criar tratamento normativo não previsto.
Por todos esses motivos, parece-nos contrária à Lei nº 6.374/89 e abusiva a forma de cálculo que vem sendo utilizado em São Paulo, onerando irregularmente os contribuintes, para impor juros de mora sobre uma penalidade antes de ela passar a existir.
[1] REsp 1.129.990, 2ª Turma, rel. Min. Castro Meira, e REsp 834.681, 1ª Turma, rel. Min. Teori Zavascki.
[2] Aparentemente não se percebeu, em vários julgados do TIT, a diferença de redação entre a Lei nº 6.374/89 e o RICMS/SP. Afirma-se que a aplicação de juros para calcular a própria multa, antes de esta ser imposta, estaria prevista na lei, o que não é certo. Talvez fosse possível tentar construir linha de interpretação nesse sentido (com a qual pessoalmente não concordaríamos), mas isso deveria ser ao menos desenvolvido. O que ocorre em alguns julgados do TIT não é isso. Há a simples afirmação de que a lei determinaria expressamente essa forma de cálculo, o que não é correto. Nesse sentido, a nosso ver equivocado, este precedente: “De acordo com os mencionados dispositivos, desde a entrada em vigor da Lei nº 13.918/09 (D.O.E. de 23/12/2009), cuja matéria foi regulamentada pelos artigos do RICMS/00, tanto o imposto quanto a multa sofrem a incidência de juros de mora, tendo a fiscalização calculado a multa aplicada sobre o valor básico acrescido dos juros de mora devidos e não sobre o valor básico original, como era feito anteriormente à referida Lei, pautando-se, portanto, em norma válida, vigente e eficaz” (processo DRTC-II-890627/2011).
Mais bem fundamentado é o voto proferido neste outro precedente (cuja decisão veio a ser encaminhada em outro sentido, nos termos de preliminar também favorável ao contribuinte):
“Vejo, primeiramente, que o termo de retificação e ratificação do AIIM manteve a sistemática original, de cálculo da multa sobre valor distinto do valor histórico do AIIM. Nesse sentido, é fato que o §9º do artigo 85 da Lei SP nº 6.374/89, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13.918/09, prevê que a multa será calculada sobre o valor básico do tributo atualizado.
Ora, é sabido que desde 01/01/1999 não mais subsiste atualização monetária no Estado de São Paulo, ex vi o disposto na Lei SP nº 10.175/98 (artigo 2º). Desse modo, a menos que essa sistemática fosse retomada em nosso Estado, permaneceria esse dispositivo sem aplicabilidade prática, mormente até que a atual política econômica acabasse de vez com a estabilidade tão heroicamente obtida por governos pretéritos.
Por outro lado, o artigo 96 da Lei SP nº 6.374/89 prevê que o valor do imposto, bem como o valor da multa, ficam sujeitos a juros de mora – que atualmente não mais são calculados com base na taxa Selic, mas com base em percentual que pode facilmente superar 30% ao ano. Enfim, não há na Lei SP nº 6.374/89 nenhum fundamento para que o valor da multa seja calculado sobre o principal (ICMS) acrescido dos juros já incorridos até a lavratura do AIIM. Diz-se apenas que o cálculo seja feito com base no valor atualizado, e é só!
Não obstante, tem-se que o Decreto nº 55.437/10, ao regulamentar a Lei SP nº 13.918/09, alterou enunciados dos artigos 527 e 565 do RICMS com o objetivo de – em nítida confusão de conceitos – estipular que o cálculo da multa deve ser feito a partir do principal + juros incorridos até a data da lavratura do AIIM.” (processo DRTC I – 172385/2010).
[3] O Tribunal de Justiça de São Paulo, em mais de um precedente sobre o tema, aceitou a imposição de juros sobre a multa, mas apenas após a lavratura do auto de infração. Confira-se: “Assim, os valores de principal e multa de ICMS estão sujeitos a juros de mora de 0,13%, ao dia, podendo ser reduzidos por ato do Secretário da Fazenda, resguardado o patamar mínimo da Taxa Selic (artigo 96, inciso II, § 5º, da Lei Estadual n. 6.374/89). É importante destacar que a aplicação do artigo 96, inciso II, § 1º, da Lei Estadual n. 6.374/89 está adstrita à mora relativa à multa aplicada nos termos do artigo 85 desse mesma lei. Em outras palavras, cuida-se de juros moratórios incidentes apenas sobre a multa imposta após a lavratura do auto de infração” (Ap. com revisão nº 0.005.142-40.2010).
[4] Por essa razão, o STJ entendeu legítima a incidência de juros de mora sobre a multa aplicada e, por isso, constituída como crédito da Administração: “De maneira simplificada, os juros de mora são devidos para compensar a demora no pagamento. Verificado o inadimplemento do tributo, advém a aplicação da multa punitiva que passa a integrar o crédito fiscal, ou seja, o montante que o contribuinte deve recolher ao Fisco. Se ainda assim há atraso na quitação da dívida, os juros de mora devem incidir sobre a totalidade do débito, inclusive a multa que, neste momento, constitui crédito titularizado pela Fazenda Pública, não se distinguindo da exação em si para efeitos de recompensar o credor pela demora no pagamento” (REsp 1.129.990- sublinhamos –, também transcrito no REsp 834.681). Esse trecho da fundamentação do STJ a nosso ver sinaliza o entendimento de que não seria admissível impor juros sobre multa ainda não aplicada e que, portanto, ainda não integra o crédito fiscal ou ainda não está constituída como crédito titularizado pela Fazenda Pública.
[5] Assim, submeter a base de cálculo da multa no valor, digamos, de $ 100 a juros de mora de 50% gerará o valor final de $ 150. Aplicando-se uma multa de 10%, chegar-se-á ao valor da penalidade de $ 15. Já se, inversamente, for aplicada a multa de 10% à sua base de cálculo de $ 100, teremos o valor de $ 10. Este, submetido aos juros de 50%, chegará aos mesmos $ 15.
Fonte: Revista Consultor Jurídico.
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